Carta de Candidatura – Bienal de Veneza 2023

São Paulo, 30 de setembro de 2022.

 

Caro Antonio Lessa,

 
No momento em que a Bienal de Arquitetura de Veneza convoca à realização de um LABORATÓRIO DO FUTURO – tema proposto pela curadora Lesley Lokko para a edição 2023 –, consideramos que a participação brasileira no evento se torna importantíssima, para não dizer imprescindível.

 
O Brasil, país habitado por etnias com diferentes visões de mundo, vive hoje um forte movimento intelectual nascido das populações antes tratadas como estando à margem do que era considerado relevante. Pensadoras e pensadores indígenas, afro-diaspóricos, feministas LGBTQIA+, dentre outros, conduzem debates sobre o modelo de sociedade que o mundo ocidental criou e propõem outros olhares para urgentes questões, produzindo pensamentos que vão na contramão da cultura hegemônica e que colocam em xeque esse modelo hoje percebido como insustentável. Nosso país acumula uma importante e rara experiência e uma rica produção de pensamento na discussão que agora é tema de uma Bienal.

 
Num tempo de urgência ecológica, em que a busca por uma visão de maior conexão com a Terra é fundamental, o evento convoca a uma nova relação com o planeta. Para além da clássica divisão entre natureza e cultura e a partir de perspectivas diferentes do modelo eurocêntrico hoje vigente no campo da construção, são esperadas na Bienal de Veneza propostas de arquitetos e urbanistas do mundo todo.

 
Queremos, por meio desta carta, oficializar nossa candidatura à realização da exposição a ser apresentada pelo Pavilhão Brasileiro em 2023, através de um grupo heterogêneo – com integrantes indígenas, afro-brasileiros e euro-brasileiros -, de profissionais ligados à arquitetura e ao urbanismo – alguns com a prática, outros com curadoria, atuação acadêmica, produção de conteúdo.

 
Há muitos anos refletimos, debatemos e pesquisamos sobre questões ligadas ao convite feito pela Bienal. Dentre nossos interesses e produções intelectuais e/ou artísticas estão temas como a relevância e o papel da arquitetura no futuro – considerando que o ato de construir é, em sua maioria, antiecológico –, a necessidade de um novo pacto entre construção e natureza e a importância de considerar diversas vivências de mundo no desenvolvimento de novos imaginários coletivos de cuidado com o planeta.

 
Nossa proposta tem como base a certeza de que é necessário repensar coletivamente os modos de desenhar e construir os nossos espaços, dando especial atenção às vozes daqueles que têm com a Terra não uma relação de dominação, mas de pertencimento: os povos indígenas brasileiros e as populações afro-brasileiras, dentre outros movimentos minoritários. Contemplar experiências por anos silenciadas para então realizar, de maneira efetivamente democrática, a urgente transformação no nosso modo de habitar o planeta e de ser arquiteto.

 
NOSSA PROPOSTA

 
Partindo do convite para a criação de um laboratório do futuro, entendemos nosso projeto como algo vivo. Nosso objetivo é chegar ao fim do evento tendo traçado novas diretrizes para a arquitetura, a serem apresentadas em uma publicação que possa ser compartilhada – um livro e/ou um hotsite.

 
Nossa metodologia passa pela realização de uma extensa programação de atividades (experiências, debates, rituais, workshops) que ao longo dos seis meses de evento possibilitará tecer, coletivamente, os desdobramentos às questões estabelecidas no ponto de partida. A ideia é garantir não apenas o envolvimento dos participantes da Bienal nas discussões, mas também possibilitar a participação de diferentes grupos no Brasil, através do uso de ferramentas online, a fim de integrar o próprio evento ao país e mostrar ao mundo o Brasil múltiplo que somos.

 
De modo preliminar, elencamos seis temas – um para cada mês do evento – para animar os encontros e debates. Imaginamos abrir cada etapa da programação com um pequeno ritual (hasteamento de diferentes bandeiras e ‘batismo’ do solo da exposição com punhados de terra trazidos de diferentes regiões do Brasil). As questões seriam:

 
1.1 a terra é um ser vivo?
1.2 o arquiteto é um herói?
1.3 o moderno está em ruína?
1.4 a arquitetura é dispensável?
1.5 a arquitetura pode criar outros mundos?
1.6 podemos desenhar com o não humano?

 
Entendemos que essa proposta convoca à criação de uma cenografia capaz de ser experiência sensível ao abrigar os encontros.

 
CENOGRAFIA

 
Imaginamos ocupar o pavilhão com uma topografia composta por formas orgânicas, em contraste com as linhas modernistas e retas da arquitetura de origem, formando um percurso em que o solo – a terra, elemento com o qual precisamos urgentemente nos reconectar – nos recebe em seu estado atual, sujo, e nos surge cada vez menos poluído à medida que avançamos, até chegar a uma terra limpa, onde uma grande roda – forma que aparece em boa parte das culturas da história humana – simboliza (e promove) os encontros e debates a serem ali realizados.

 
Cheiros e sons nos acompanham pelo caminho (cheiro e barulho de queimadas no ponto de partida, pássaros e barulhinho de chuva na linha de chegada, por exemplo) e um espelho d’água serpenteia pelo pavilhão em referência ao mito da serpente cósmica, presente na cultura dos povos originários como, presente na cultura enquanto permanece a mesma.

 
O céu, simbolizado pela viga invertida de concreto do pavilhão, aparece coberto por uma pintura colorida que combina desenhos indígenas a pinturas dos homens pré-históricos e a pichações modernas. Vemos essa viga, assim como o percurso d’água, como alegorias da fecundação da terra nesse grande útero que a arquitetura original do Pavilhão Brasileiro nos parece encarnar.

 
Com essa proposta, buscamos ocupar o pavilhão tornando-o não apenas palco, mas também protagonista do chamamento à reflexão à qual a Bienal nos convoca.

 
Nos colocamos à disposição para mais informações e aguardamos ansiosamente a oportunidade de poder apresentar a você, com mais detalhes, o nosso projeto.

 
Atenciosamente,

 
FRANCY BANIWA

 
Doutoranda em antropologia social pela UFRJ e líder indígena, é a primeira consultora indígena de sua região, o Alto Rio Negro, na UNESCO; foi coordenadora do departamento de mulheres indígenas da FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro) e presidente da AMIBI (Associação das Mulheres Indígenas do Baixo Içana).

 
ESTER CARRO

 
Arquiteta e ativista urbana criadora do movimento Fazendinhando, projeto de urbanismo social que transformou um antigo lixão no complexo de Paraisópolis, em São Paulo, em um parque que recebe eventos e cursos. Mestre em Projeto, Produção e Gestão do Espaço Urbano, professora e pesquisadora no Núcleo de Mulheres e Território do Laboratório de Cidades (Arq. Futuro e Insper) e fellowship na Avenues São Paulo.

 
IAZANA GUIZZO

 
Arquiteta e urbanista, professora do departamento de projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ. Sócia-fundadora do estúdio “Terceira Margem, arquitetura e singularidades”, e do método participativo e sensorial do mesmo nome, que visa a reconexão à Terra ao projetar e construir. Autora do livro “Reativar Territórios: o corpo e o afeto na questão do projeto participativo”

 
OLIVIER RAFFAELLI e GUI SIBAUD

 
Arquitetos e urbanistas, sócios fundadores da agência franco-brasileira de arquitetura TRIPTYQUE, que desde 2000 acumula participações em exposições e conferências em algumas das instituições culturais mais relevantes do mundo(como o Museu Guggenheim de Nova York e o Centre Georges Pompidou, em Paris), além de desenvolver parcerias com importantes nomes da arquitetura e urbanismo (Paulo Mendes da Rocha, Jean Nouvel, Alejandro Aracena, dentre outros) e assinar projetos de diferentes vocações e escalas em inúmeros países. Ambos são co-criadores do bloco de carnaval Acadêmicos do Baixo Augusta e professores da École Speciale d’Architecture, em Paris.

 
FERNANDO SERAPIÃO

 
Crítico e curador de arquitetura, é editor da revista “Monolito” e tem centenas de artigos publicados em periódicos no Brasil e no exterior, em países como Espanha, Itália e China.

 
SANDRA SOARES

 
Jornalista e psicanalista, co-fundadora do maior bloco de carnaval de São Paulo, o Acadêmicos do Baixo Augusta, que desde 2009 ocupa as ruas com cultura e arte e luta por uma cidade mais humana, diversa e democrática; co-criadora do projeto “Vamos Falar Sobre o Luto?”, que luta para combater o tabu em torno do luto.

 

 

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